Talvez seja novidade. De entre as tantas coisas que se apregoam como novas e que de novas nada têm.
Mas esta talvez o seja. Mas não é uma novidade muito nova. Simplesmente a cada dia se nota mais.
Até há duzentos anos atrás, na nossa civilização, as vozes e os ouvidos eram pertença de muito poucos.
A alfabetização, a imprensa, a rádio e a televisão contribuíram para o que número de vozes e de ouvidos se alargasse. A proporção é hoje muito diferente.
Parece óbvio que falar para um número reduzido de ouvidos, mais ou menos habituados a isso, é muito diferente de falar para uma massa, pouco habituada a falar e a ouvir.
O nível da argumentação baixou. O nível dos objectos dessa preocupação baixou - a quantidade de pessoas que argumenta sobre se uma bola entrou ou não, é impressionante.
Não me preocupa tanto o facto de haver muita gente a discutir futebol. Suponho que até é útil que assim seja. Mais me preocupa que o nível geral da argumentação tenha baixado para níveis quase risíveis. Que o facto de ter tantos ouvidos à escuta, conduza os argumentos para o arrazoado infantil. E que sobre esse tipo de argumentação se construam depois as réplicas e as tréplicas.
Talvez que as outras vozes falem entre si. Ao ouvido.
Mas fazem falta. Assim haja também ouvidos capazes de perceber o que dizem.
O Natal existiu. Claro que existiu.
Existiu em presépios com rebanhos de louça, musgo em pacotes, pontes romanas, castelos inverosímeis, fontes sem água, tudo em escalas diversas, como se alguém tivesse o divino poder de baralhar as perspectivas.
Mas ficou-se. Ficou-se lá para lá trás, ao pé da cadeira junto ao lume, onde se amontoavam caixas de Lego, carros da Corgi, chocolates Regina, lápis Viarco, livros das Mil e Uma Noites.
Ficou-se por aí, sem dizer quando. Ficou-se no frio barbeiro, nos alguidares de gelo no quintal, no madeiro que haveria de arder até ao Ano Novo, nos bolos feitos no forno da padaria, nas samarras, nos capotes pendurados na entrada.
Ficou-se no cheiro das carnes misturadas com fumo em todas as terras de passagem.
Ficou-se no azul forte do céu que inundava o monte, entre cães e gatos.
Ficou-se na pele fria do assento do carro, nas madrugadas em que se transpunha o Caldeirão.
Ficou-se em notas de quinhentos daquelas de chapa 9 cujo número de série tinha que ser verificado.
Ficou-se nos discos novos que se ouviam do outro lado da casa, em altos berros.
Ficou-se nos bolsos cheios de bombons.
Ficou-se entre quatro paredes. A sul.
Sou um rústico em muitas coisas. Urbanidade alguma, q.b..
De entre as características que me entraram nos genes ou que absorvi do habitat, há este fascínio pelas árvores, embora pouco ilustrado.
As saudades que sinto de dada oliveira, multicentenária na certa, que um dia soube cortada por ameaça à estabilidade de uma construção. Por mim, teria estabelecido um compromisso entre as casas, também mais do que centenárias, e a árvore. Talvez sem sucesso. Pouco importa agora, que nem umas nem outra se encontram de pé.
Saudades de certa romãzeira, que morreu de morte natural. De um pomar inteiro que soçobrou ao abandono. Lá estão as figueiras da orla como testemunhas resistentes de outros tempos.
Saudades de árvores das quais não sei o destino. O meu limoeiro, a minha nogueira, as nespereiras, as ameixeiras, as figueiras também. Desse quintal que suponho ainda existe.
Mas há uma árvore que hoje merece o meu afecto. Não é muito velha, não pode ser. É um eucalipto solitário, no meio dos sobreiros. Talvez que se interrogue o que está ali a fazer, a olhar de cima o pachorrento montado, cada vez mais de cima.
Está perto da casa. Se um dia um golpe de nortada o atirar ao chão, é certo que derruba a tenda. Espero não chegar ao ponto de ter que lhe dar um destino. Não sei nada destas árvores. Lembro-me daquele que havia (ainda lá estará?) junto à antiga E.N. 261-3, entre Santiago e Sines e que era de um porte impressionante. O meu para lá caminha. Vê-se ao longe, de muito sítio. Espero que lá fique, quando eu me fôr embora.
É curioso que não consiga encontrar informação sobre o tempo de vida desta espécie. Tudo o que se encontra é informação sobre as idades de corte, espécie de crescimento rápido, blá, blá, blá...
Ainda assim, descobri agora uma página onde me dizem que pode viver mais de cem anos. Claro que pode. Ora essa.
Dava mesmo um filme.
Cruzámo-nos uns bons trinta e tal anos, desde que apareci por cá, até que ele desistiu.
Nunca se lhe conheceu família, sequer amigos. E se a vizinhança era velha, escrutinadora.
Uns diziam-no médico, dada a sua predilecção pelo vocabulário anatómico, patológico e simposial.
Outros génio louco. Sendo que, se todos temos um pouco duma coisa e de outra, ele teria a mais das duas.
Não perturbava a existência dos demais. Se os outros perturbavam a dele, nunca se soube. Por vezes, destinava longos solilóquios a vizinhos mais próximos, quase sempre entre a ironia, o afecto e o desconcerto. À porta do prédio, enquanto desenhava figuras no ar com a chave.
Sabia-se que os mesmos vizinhos lhe cuidavam da casa.
Talvez apenas quando ele consentia que o fizessem.
Um dos sinais mais violentos da sua existência foi a defenestração de um saco de lavandaria, repleto de maços de tabaco vazios. Relíquias já fora do mercado.
Certa vez, desfez-se das mobílias. Vimo-lo radiante - assim parecia - sentado na camioneta, ao lado dos homens que a carregaram.
Solicitado, dava longas aulas de história e geografia. Monarcas russos confundiam-se então com pinguins da Antártida, médicos portugueses com políticas americanas, produtos alimentares com compêndios de álgebra, peixes da nossa costa com sistemas de comunicação.
Gostava de comboios em verde, de poliglotas, de casas em tons de caranguejo.
Usava luvas e gabardine todo o ano.
E uma noite, desistiu.
Enquanto decorrem os trabalhos de arrumação do espólio, enquanto o tempo e a disposição não permitem mais uns disparates em forma de texto, aqui se mostram duas fotomontagens de poucos conhecidas:
in Ponte da Arrábida sobre o rio Douro e seus acessos, MOP - JAE, 1963
Os mapas, as cartas, perseguem-me.
Poderia fechar-me, como a personagem de Marquez, num quarto com mapas. Dispensando os instrumentos de navegação.
De dentro de livros, saem as mais estranhas indicações.
foto do Magazine da Morrison-Knudsen Company, Inc., Novembro de 1964 por MCV às 16:14
Agradecimento
O autor destas linhas agradece o destaque e a recomendação a "A Minha Rica Casinha".
E retribui, sem que o faça apenas por cortesia. Vale a pena ser visita dessa casa. por MCV às 15:44
Falemos de rosas, ou de fadas
Uma dedicatória
Esta imagem resulta da combinação de outras encontradas na rede e que não me pertencem. Por serem muitas, abstenho-me de as nomear por MCV às 19:15 de 05 dezembro 2004