em busca dos pilares esbeltos por MCV às 00:26 de 14 agosto 2004
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O homem naquele dia não se calava ao telefone.
Tratava-se de combinar uma ida a petisco e ele só lhe dava na mesma tecla. Que eu me preparasse, que as surpresas iam ser muitas.
Ainda lhe disse que nunca fui muito de ficar de boca aberta e que quando isso lá acontecia, pedia de imediato que me colocassem uma maçã entre os dentes, ficando não como o bácoro dentro do cesto, mas como o dito já pronto a servir.
Ele que não, que as coisas iam ser muito piores do que eu podia imaginar.
Ainda lhe disse que não seriam piores do que eu sempre as imaginei e que, por maior que fosse a montanha, não seriam mais do que ratos o que restaria dela quando a feira se desmanchasse.
Ainda argumentou comigo.
Suponho que a maior parte dos portugueses recebeu telefonemas do homem.
Os meus leitores não concordam comigo que a qualidade actual dos anúncios é pouco mais do que péssima?
Refiro-me aos da rádio, que são aqueles a que me submeto quase o dia inteiro.
O Zé ainda não fora descoberto a comer um fardo de palha, escondido por uma manta.
As moças também ainda não tinham sido postas a um canto. O cantorio ainda não tinha por isso começado.
Resumindo, ainda se viam os pares.
Foi aí que começou a perturbação. O dono da casa irrompeu no celeiro e subiu aos fardos de palha do lado contrário ao do Zé.
Parou a música.
"Quem é que matou o meu pato-viúvo?"
Parecia mal abusar assim do anfitrião.
A guarda chegou pouco depois, atraída pelas luzes dos carros na charneca.
Enquanto cumprimentava o sargento, juro que ouvi uma voz do outro lado do monte:
"O quem? Eles em serviço não podem beber! Agora cá comer pato!"
Não sei se são os mesmos que tanto se indignam com a repetição dos incêndios.
Não sei se são os mesmos que tanto se indignam com a repetida incompetência aqui e ali.
Não sei se são os mesmos.
Mas alguém é. Alguém repete o tradicional chorrilho de asneiras ao volante quando a chuva volta. E quando não é da chuva, é das calças.
E não é invulgar ver-se a passividade dos próprios relatando para as câmaras que nada havia a fazer. Se estava já tudo enfeixado...
Mesmo o motorista de um autocarro de passageiros que há uns anos acabara de matar duas pessoas, dizia calmamente que quando dera por ele, já estavam todos parados e enleados na auto-estrada. Não conseguiu parar pois.
Não sei se são os mesmos. Mas alguém é.
A5, entre as 15:02 e as 15:06 de 8/8/2004, em três locais distintos - imagens do IEP por MCV às 10:24
Chuvas de verão
Não é o cheiro da terra molhada que recordo, esse reservo-o para os inícios do Outono, para as tardinhas em que os que caçavam reconheciam perdizes e falavam de lebres agachadas.
Não é o piso de manteiga, esse reservo-o para a memória das lições que recebia do meu tio, ainda mal chegava aos pedais do faruque.
Não são as goteiras nos toldos das esplanadas, essas reservo-as para as vilegiaturas tardias em cafés desertos.
Não é a torrente barrenta entre seixos que descia pelo largo, essa reservo-a para alturas da feira de Castro.
Sempre que chove no verão, sempre que chove no meu verão, vêm-me à memória cordas e aprestos de barcos, o defunto pontal de Sines e banhos de água cadente, dentro ou fora das ondas da praia Vasco da Gama.
Sempre que chove no meu verão, vejo as lentas gotas escorrendo da nespereira em frente da janela, ou a cor húmida das flores avistadas pelos postigos da cozinha.
Nada disso existe mais.
O esperto é fácil de identificar quando se sente em inferioridade.
Depois de debitar os habituais lugares-comuns sobre a esperteza saloia dos outros, destrunfa.
Se, à medida que carteia valetes e damas, sente o adversário inabalado e talvez inabalável, muda o rumo do jogo e já só pensa em narrar episódios de jogos que só ele jogou.
Aqui, normalmente, recebe telefonemas imaginários. De toda a sorte de figuras e figurões.
Vê-se que fez algum trabalho de casa. As pessoas com quem fala através de ligações que só ele conhece, são quase todas identificáveis pelo interlocutor. Nada de detalhes óbvios.
Depois vangloria-se de coisas que ele mesmo acha normais.
Depois queixa-se insustentadamente.
Quando sai de cena, na dele glória, vai em cima da caixa de carga de um veículo próprio. O volume que se distingue na algibeira da camisa é o livro de cheques, claro. Volumoso? Sim. Recheado de notas gordas.
Notas de rodapé, digo eu.